segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A SAÚDE E OS SENTIMENTOS

A saúde e os sentimentosAs condições emocionais dos seres humanos, que são afetadas por aspectos como estresse, relações afetivas e atitude diante dos problemas, podem ter um papel fundamental no aparecimento e tratamento de doenças como o câncer

A influência das emoções na saúde humana, já apontada pelo grego Hipócrates no século IV a.C., recebe atenção cada vez maior na área médica. Na UNESP, várias pesquisas associam as condições emocionais dos pacientes ao aparecimento e tratamento das doenças. Uma das linhas de investigação destaca a relação do câncer entre mulheres com problemas como estresse, distúrbios familiares e conjugais. Outros trabalhos analisam como o sistema imunológico humano é afetado pelos sentimentos. As conclusões dos especialistas geralmente assinalam a importância da presença de psicólogos nos grupos voltados para o tratamento das moléstias.
Carmen Neme, docente da Faculdade de Ciências (FC), campus de Bauru, enfatiza que o câncer é determinado por complexas relações genéticas, psicológicas, imunológicas e ambientais. No entanto, a psicóloga adverte que um dos fatores mais significativos nesse processo é o chamado estresse crônico, provocado por um ritmo de vida desgastante e pequenas e freqüentes frustrações, responsáveis por uma elevada excitação emocional que, por sua vez, leva ao desequilíbrio psíquico e fisiológico. Ela se baseia em três estudos que promoveu sobre o tema, apresentados no II Congresso Brasileiro de Stress, em setembro, na cidade de São Paulo.
Num dos levantamentos, baseado em entrevistas com 40 mulheres com câncer de mama, útero e ovário, atendidas no Centro Regional de Oncologia, em Bauru, as pacientes associaram as crises emocionais com o aparecimento da doença. Segundo as entrevistas, 57,5% das participantes acreditavam ter adoecido devido a perdas na área afetiva, depressão, sentimento de culpa e estresse. Apenas 9% do grupo atribuiu o mal à hereditariedade. “Verificamos que 87,5% das pacientes relataram que, nos dez anos anteriores à doença, ocorreram eventos considerados importantes na área familiar, envolvendo perdas afetivas e financeiras”, afirma a docente.
Num outro estudo, baseado em entrevistas com 130 pacientes homens e mulheres com câncer, a docente identificou a família como o maior foco de problemas afetivos e emocionais. “Ouvimos reclamações como perda de filhos, alcoolismo, drogas, brigas e rompimentos com pais, irmãos ou sogros, além de separações traumáticas”, conta a docente. Segundo a psicóloga, devido ao acúmulo de funções na família e no trabalho, as mulheres são as que mais sofrem com o estresse crônico. “As pequenas e repetidas demandas diárias são potencialmente as mais patogênicas, já que não são facilmente eliminadas ou minimizadas, por causa do contexto social em que elas vivem”, explica.
Relações conjugais
A atitude das mulheres diante dos transtornos na área emotiva, principalmente dentro do casamento, também pode ser fundamental para o surgimento da doença. Essa foi a conclusão do mestrado da psicóloga Luciana Biem, realizado na Faculdade de Medicina, campus de Botucatu. Na pesquisa, foram entrevistadas 80 mulheres com e sem câncer, na faixa etária entre 45 e 65 anos. “As participantes de ambos os grupos relataram a presença de conflitos afetivo-conjugais geradores de estresse, mas encontramos diferenças estatisticamente significativas quanto à maneira de lidar com esses eventos”, comenta Luciana. “As mulheres com câncer de mama, por exemplo, atribuíram maior importância e intensidade aos conflitos conjugais.”
A pesquisadora procurou identificar os motivos que levaram ao casamento, verificar se tais expectativas foram ou não concretizadas e, ainda, o modo como as participantes enfrentavam crises na relação. “A maioria das mulheres sem câncer apontou o amor como motivo principal para a união, enquanto as mulheres com o mal citaram, predominantemente, a necessidade financeira e o medo da solidão”, relata Luciana. “Ambos os grupos disseram possuir expectativas positivas e romantizadas sobre o casamento, mas a maioria das entrevistadas sem câncer considerou que suas expectativas foram concretizadas na convivência com o parceiro.”
Embora a maioria das mulheres dos dois grupos tenha classificado sua relação conjugal como boa ou regular, aquelas que sofriam de câncer indicaram que costumavam enfrentar caladas as crises com os maridos, enquanto as que não tinham câncer disseram recorrer ao diálogo. “Os resultados apontam para a importância de se incluir informações sobre as variáveis psicossociais geradoras de estresse feminino nos programas psicoeducativos e preventivos do câncer de mama”, justifica a pesquisadora.
Influência imunológica
Paralelamente aos levantamentos baseados em entrevistas, há pesquisas que avaliam os efeitos das condições sentimentais sobre o organismo. O imunologista José Mauricio Sforcin, do Instituto de Biociências, campus de Botucatu, tem entre suas linhas de investigação a associação do estresse com o sistema de defesa do corpo. “Muitos trabalhos têm sugerido essa relação, nos últimos anos, principalmente a partir da descoberta da interligação dos sistemas imunológico, nervoso e endócrino”, comenta o docente.
Sforcin ressalta que indivíduos depressivos costumam apresentar baixa produção de citocina IL-3 – uma proteína que regula as respostas do sistema imunológico às ameaças ao organismo – e reduzido número de células de defesa, os linfócitos, que combatem infecções específicas. “A resposta imune celular é mais afetada durante o estresse, o que pode levar à progressão do câncer”, completa o imunologista.
Em seus estudos, o psicólogo Nelson Silva Filho, docente da Faculdade de
Ciências e Letras, campus de Assis, identificou fatores psicológicos associados às alterações da condição imunológica de indivíduos infectados pelo HIV, vírus causador da aids. A partir de análises feitas no Ambulatório Especial do Departamento de Doenças Tropicais e Diagnóstico por Imagem da FM/Botucatu, ele constatou que, entre 31 pacientes infectados – com ou sem os sintomas da doença –, 84% apresentavam algum grau de depressão crônica e 36%, propensão suicida.
“Esses pacientes também expressaram diminuição das células de defesa específicas contra o vírus, as CD4+ e CD8+, e aumento da carga viral no organismo”, afirma. O pesquisador também considera importante avaliar melhor os efeitos do vírus e dos medicamentos anti-retrovirais, tais como depressão, irritabilidade, alucinações e delírios. “Essas manifestações contribuem para dificultar o enfrentamento da doença e das situações vividas pelos pacientes, reforçando a necessidade de intervenções psicoterápicas”, argumenta.
A importância do psicólogo
O infectologista Domingos Alves Meira, responsável pelo Hospital-Dia da FM/Botucatu, que atende pacientes com aids no município, também acentua que doenças infecto-contagiosas como herpes e aids podem ter origem psicossomática. “Como há uma relação íntima entre o estresse e os sistemas imunológico e endócrino, os estados emocionais alterados se transformam em portas de entrada para essas doenças”, afirma.
Meira enfatiza que a introdução de um psicólogo na equipe multidisciplinar que coordena levou mais pacientes a seguir as recomendações médicas. “O índice de adesão ao tratamento chegou próximo a 90%”, afirma. A psicóloga Carmen lembra que, nos serviços de oncologia credenciados pelo SUS, já é obrigatória a inclusão de psicólogos nos grupos terapêuticos. “O objetivo é fazer com que aspectos emocionais causados pela doença ou pelo estresse crônico não prejudiquem a evolução do tratamento”, esclarece.
Para Carmen, o enfrentamento de doenças como o câncer não depende apenas das boas condições de assistência médica. A atitude psicológica – como confiança, determinação, coragem e até convicções religiosas – pode desempenhar um papel relevante. Em uma pesquisa com 24 pacientes com diagnóstico de câncer, ela verificou que 58% deles citaram a importância do apoio de amigos, familiares e da equipe de saúde para enfrentar a moléstia, 24% destacaram a fé e a religiosidade, e 18%, o valor da autoconfiança, das atividades de lazer e dos pensamentos positivos.
Concepção integrada
A mudança de ênfase na compreensão e enfrentamento das doenças é destacada pelo antropólogo Cláudio Bertolli, docente da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (Faac), campus de Bauru. Autor dos livros História da Saúde Pública (2003), A gripe espanhola (2003) e História da tuberculose e dos tuberculosos (2001), Bertolli enfatiza que, durante séculos, a atividade médica foi dominada por uma concepção de caráter materialista, que encara a saúde e a doença como fenômenos biológicos, sem influência de fatores psíquicos.
No entanto, segundo o antropólogo, em função de processos como o surgimento da contracultura, na década de 1960, ganhou força uma tendência que existe desde a Antiguidade, a medicina psicossomática. Essa tendência, por sua vez, se dividiria em duas correntes: a cartesiana e a fenomenológica. Para a primeira, o ser humano é composto de dois elementos inseparáveis, o espírito – ou mente – e o corpo. “Essa corrente, que confere grande destaque à dimensão psicológica, argumenta que o espírito é hierarquicamente superior ao corpo, impondo-se a ele”, esclarece Bertolli. “Quando esse espírito fraqueja, ocorre a tendência ao desenvolvimento de patologias corporais.”
A corrente fenomenológica tem uma abordagem holística, vendo o ser humano como um todo, resultado da interação de três dimensões de vida: a biológica, a psicológica e a social, e nenhuma delas seria “superior” ou determinante das outras. “O grande desafio da medicina psicossomática, porém, é estabelecer relações causais claras entre a manifestação da saúde e da doença e fatores mais complexos, seja aqueles de ordem exclusivamente psicológica, seja os que integram corpo, mente e sociedade”, destaca Bertolli.
Pacientes com câncer de mama têm orientação psicológica
Mulheres com câncer de mama submetidas à cirurgia de retirada dos seios no Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina do campus da UNESP, em Botucatu, estão recebendo apoio multidisciplinar, inclusive o psicológico, no Serviço de Mastologia Laurival de Lucca. O grupo tem em média oito pacientes, que participam de encontros nos dias de acompanhamento médico.Coordenado pela psicóloga hospitalar Clarissa Ramos e pela assistente social Ana Maria Alves de Camargo, o trabalho visa possibilitar o reconhecimento mútuo entre as pacientes, com a expressão e o compartilhamento de sentimentos, decorrentes da experiência com a doença e o tratamento. As pacientes recebem também informações e orientação sobre questões previdenciárias e direitos sociais.
“Na identificação com outras mulheres que viveram e ou vivem a mesma situação, em diferentes fases do tratamento, as participantes são estimuladas a desenvolver estratégias de enfrentamento dos problemas”, acredita Clarissa. “Isso facilita a reintegração aos seus contextos sociais, ocupacionais e afetivos, que muitas vezes fica comprometida pelas condições emocionais e físicas dessas mulheres.”
Embora em funcionamento há apenas seis meses, segundo a especialista, o grupo tem mostrado resultados. “Já temos evidências de melhora das pacientes, como o maior grau de adesão aos procedimentos médicos e as suas próprias manifestações de que se sentem mais animadas para submeter-se à cirurgia, por exemplo”, explica.
Uma das participantes do grupo, a jornalista Gislaider Cruz, que há três anos soube da doença, aprova o trabalho. “Aqui recebi um apoio que nunca teria em casa”, afirma. Ela diz ter certeza da relação do seu câncer com problemas emocionais que enfrentou durante a vida, principalmente em decorrência da depressão e seus efeitos.

O significado das doenças, segundo Susan Sontag
Ao falecer de leucemia, em 2004, aos 71 anos, em Nova York, a ensaísta norte-americana Susan Sontag encerrava a sua própria batalha contra o câncer. Desde 1976, enfrentava a doença no seio, no útero e no sistema linfático, sempre argumentando que a responsabilidade por esse mal não deve ser transferida aos doentes ou a um Deus onipotente.
Para ela, a moléstia precisa ser vista como fato biológico, não como destino ou expiação de alguma culpa. Em seus livros, mostrou como a medicina, em suas relações com a sociedade, muitas vezes interpretou a enfermidade como uma punição. Segundo ela, isso já viria do século XVIII, quando o pregador e escritor puritano Cotton Mather dizia que a sífilis era um castigo que Deus reservava aos pecadores.
A ensaísta estudou como as moléstias foram romantizadas e demonizadas, principalmente nos livros A doença como metáfora (Graal, 1984) e A aids e suas metáforas (Companhia das Letras, 1989). No primeiro, estuda a tuberculose, vista por muitos como metáfora da paixão, e o câncer, analisado como resultado da repressão da sociedade contemporânea sobre o ser humano. Para Sontag, ambas são vistas socialmente como se fossem males provocados pelo próprio indivíduo, como uma forma, respectivamente, de purgar pecados ou
de reagir perante situações adversas.
No segundo livro, mostra que, enquanto o doente de câncer se pergunta “por que eu?”, voltando-se contra um ser superior, o portador de aids é levado, pelo contexto que relaciona o doente ao homossexualismo e ao consumo de drogas, a questionar as próprias “fraquezas”. Assim, o aidético seria estigmatizado e massacrado pelo argumento de que é culpado pela própria enfermidade de que é vítima.
Na sua avaliação, a doença não deveria ser vista como uma metáfora, pois isso a tornaria uma fonte de preconceitos. O grande desafio estaria em enfrentar as moléstias como problemas físicos, evitando assim que a pessoa se sinta responsável pelo mal que carrega, despertando em si mesma sentimentos de auto-rejeição e de punição merecida.
Oscar D’Ambrosio
Oscar D'Ambrosio
JULIO ZANELLA

Jornal UNESP :::
Outubro/2005 – Ano XIX – nº 205 

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