sábado, 4 de junho de 2016

Câncer exige política de Estado

O conceito de medicina personalizada é um dos paradigmas da oncologia. Um dos melhores exemplos é o Câncer de Mama HER2 positivo. Além de identificar um alvo molecular específico, foram desenvolvidos tratamentos dirigidos a esse alvo, com melhor controle da doença e cura de mais pacientes. Desde 1998, o medicamento anti-HER2 Trastuzumabe é aprovado pelo FDA (EUA) para o câncer de mama metastático e desde o ano 2000 vem sendo usado no Brasil. Em 2005, foi adotado na doença mais inicial, para reduzir o risco de recidiva.

As autoridades brasileiras que controlam a gestão da saúde não permitiram o acesso de Trastuzumabe às pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) até janeiro de 2013, questionando a veracidade do benefício, mesmo com as inúmeras tentativas da SBOC e de entidades do terceiro setor, como o Instituto Oncoguia e a Femama, de sensibilizar gestores públicos a rever essa posição. Centenas de ações ainda sobrecarregam o Judiciário para pleitear o acesso. Quando finalmente o SUS incorporou, proibiram o tratamento para as pacientes com doença metastática, o que ainda tira em 2016 o acesso ao medicamento.

A OMS atualizou em 2015 a cesta básica de medicamentos essenciais, incluindo o Trastuzumabe para todas as suas indicações.No Brasil, a Comissão do SUS (Conitec) segue negando o benefício na doença mais avançada. Prolongar a sobrevida e melhorar a qualidade de vida não parece uma prioridade para o governo. No SUS, a sobrevida mediana esperada para os casos avançados é de cerca de 22 meses, no cenário privado, 56 meses.
Fizemos uma estimativa (eu e o professor dr. C. Barrios, da PUC-RS, publicada em 2015 no J. Clin Oncol — Brasil) conservadora do impacto da ausência desse medicamento. No cálculo, consideramos o número de casos novos, a proporção de pacientes atendidas pelo SUS, o percentual de pacientes que poderiam receber o medicamento em caráter (neo)adjuvante (i.e. antes ou após a cirurgia) e o fato de que 20% são HER2 positivas. Utilizando os dados internacionais, chegamos à estimativa de que, para cada ano no qual a medicação não foi oferecida no SUS, 696 brasileiras morreram ou ainda devem morrer em virtude da falta do tratamento. Estima-se que 4.872 mulheres morreram no Brasil pelo fato dessa intervenção ter-lhes sido negada durante sete anos.

Embora esses cálculos sejam limitados, eles nos aproximam de uma triste realidade: um número expressivo de brasileiras com câncer de mama morreu de 2005 a 2012 por não ter acesso a tratamento curativo. Reiteremos que na doença metastática, o SUS segue negando o acesso ao melhor tratamento, e o que sabemos é que a diferença está aumentando, pois nos últimos anos foram incorporados: Lapatinibe, Pertuzumabe, T-DM1. As pacientes do SUS vivem menos e com pior qualidade de vida. Uma nova estimativa corrobora esta tese e será publicada em breve no Journal of Global Oncology. Com o tratamento padrão SUS, de cada 2 mil mulheres tratadas apenas 808 chegam vivas ao fim de 2 anos de acompanhamento e na Saúde Suplementar com o tratamento correto, cerca de 1.500 conseguem completar esses 2 anos...uma triste realidade destes dois brasis.

Quem seria o responsável por essas mortes e por estas vidas encurtadas? Na minha opinião, provavelmente todos temos uma parcela de culpa. Alguns por questionar o benefício claro e incontestável do tratamento, outros por não fazer o diagnóstico correto da situação, e outros ainda por aceitar passivamente este quadro. Saúde é um direito de todos e um dever do Estado. É um desafio ainda mais agora com a crise econômica. Devemos (poder público, gestores da área da saúde, farmacêuticas, pacientes e sociedades médicas) discutir como incorporar tecnologias de alto custo, mas são mais de 13 anos de atraso...o preço pago em vidas é (e foi) alto demais.
Em tempos de fosfo-histeria, um dos maiores sucessos da oncologia vem sendo ignorado pelos nossos gestores há anos, e neste exato momento muitas brasileiras vem lutando para sobreviver por mais tempo. No SUS, perdem-se meses na espera para o diagnóstico, a cirurgia, a quimio e a radioterapia, e no caso específico do câncer de mama HER2 positivo, sofrem a ausência de medicamentos. Sobreviver ou viver mais tempo, é quase um milagre. O Brasil, referência mundial em tratamento de Aids, hepatite e vacinação, não poderia ser referência em câncer? Câncer tem que ter uma política de Estado e não de governo.

Gilberto Amorim, integrante do Comitê de Ética da atual Diretoria, biênio 2015/2017 e coordenador Nacional de Oncologia Mamária no D’Or.

Fonte: Correio Braziliense in http://www.oncoguia.org.br/conteudo/cancer-exige-politica-de-estado-/9441/7/

Nenhum comentário:

Postar um comentário